vamos a mais um Conto do Leitor Constante!
O texto enviado é de Whisner Fraga e espero que comentem no espaço reservado.
Atá a próxima!

Morrer é março, Fabrícia, numa madrugada de Hojefeira, mas atravessávamos um outubro límpido, queimando os telhados de nosso sobrado, quando ele se entregou e eu não compreendi. Finalmente deve perguntar por mim e ser informado pelos que chamam de anjos. Anjo é um delicado frenesi de proteções. Morrer é plateia e heranças. A dor, uma efêmera penumbra navegando no sangue, deixemos claro. E depois chorar. Morrer é enfrentar remorsos de pulos e de correrias. Beijos no rosto, tapinhas nas costas, apertos de mão e pêsames, abraços e ir embora rapidamente. Mamãe deve me procurar ainda em terrenos alheios, mas não roubarei mais romãs: em nome do pai. Morrer é março e outubro e faço um nó com meus braços.
Quando alcançava seu pescoço e, inocente, infligia-me alturas para aproximar-me daquela sua orelha penugenta, abandonando os tempos num esquecimento negligente e algo impreciso, quando calhava essa proximidade, Fabrícia, havia a confiança, pois ele não me deixaria cair. Esse confronto que nunca aconteceu, porque o pai me devolvera ao chão e a desculpa era que assim arranharia a pátina da minha pele com as lâminas da sua barba. Se encontrá-lo um dia, farei como se deve, darei minha mão e iremos, porque já serei crescido.
Precisávamos sair dali, daquela combustão de mortes, da escorregadia franqueza de remorsos. Então escolho o abrigo, Fabrícia. Embora eu já a considere grandinha para suas próprias predileções, você corre comigo. O peito envaidecido de coragem. Aquele quarto, um pesadelo a nos tragar. É assim que se cresce. Nosso pai é março e morrer de profundezas. Então viveríamos uma temporada com os avós. Podia ser perigoso o que representava a casa dos outros para o nosso apetite por perdas. (Mamãe precisa descansar.) E havia sido lá também que vi a cabeça de meu tio rodopiando no forno. Às vezes tenho medo da morte. E de março e de outubro.
Estamos encolhidos, Fabrícia, e a noite é uma só. Pretendo me render ao que não sei. Desde que relei a mão naqueles pés frios e cheirando a hospital, de decadências. Estranhos aqueles dentes fugindo do sorriso. Por isso tivemos de escapar, porque havia um ranço de anormalidade nos rostos graves dos que vieram para o velório. Não quero nunca mais ver alguém morto na copa.
Algumas pessoas cochichavam quando pensei em abraçálo e imaginei que caçoavam de mim e desisti. Você, um nada tremendo ao pé de mamãe. E já me arrependia. De repente aqueles garçons rondando, com uma gravidade profissional, a ironia do corpo. Eu temia que papai não seguisse para o céu e que se levantasse dali, procurando por nós, para que trouxéssemos um chinelo ou para localizar um controle remoto. Eu não sei o que mais ele poderia fazer se acordasse e isso me assustava.
O que acontecerá agora com a horta, com o pé de mamão-macho, se não fizemos cursos de jardinagem? Não sei o que foi deles. Então você falou, Fabrícia, e discerni a palavra "fome" naquela fatia de voz que me açoitava a covardia. Eu sabia que não era hora para você se entregar à chantagem do estômago, toda a lógica da humanidade me apresentava um pai coberto por flores e as narinas vedadas por um grotesco chumaço e queixas insensatas. Que atitude tomar diante da verdade daquela urgência?
Pairava no seu pedido um tremor de desconhecimentos, uma insistência de dúvidas numa agonia sussurrada, uma severidade que não me deixava escolhas: eu devia atravessar a amplidão da copa e voltar com algo que comer, ao mesmo tempo em que antevia o seu desespero se coagulando ao se perceber sozinha e aqueles móveis acossando a incompreensão do que você tentava ser aos sete anos, Fabrícia, e eu já me tornava o novo homem da família. Levantei-me, abri a porta, contemplei outra vez o seu choro miúdo camuflado nos braços cruzados e saí.
Whisner Fraga é escritor, autor de Abismo poente, (Ficções, 2009) e O livro dos verbos, (7letras, 2010).
PAZ, LUZ E SABEDORIA CONSTANTES!
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